sexta-feira, 27 de abril de 2007

INSTRUÇÕES PARA CHORAR


Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um choro que não penetre no escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajeitada e paralela.

O choro médio ou comum consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em que a gente se assoa energicamente.

Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, e se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas e nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca.

Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza, usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão esfregando a manga do casaco na cara, e de preferência num canto do quarto.

Duração média do choro, três minutos.


[ Julio Cortázar ]

quarta-feira, 18 de abril de 2007

HISTÓRIA VERÍDICA


Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.

Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amigável, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução.

Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo.

Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.


[ Julio Cortázar ]

sexta-feira, 13 de abril de 2007

AMINOACIDENTE


Dentro de um metrô futurista em movimento.
Sem ninguém.
Passagens estranhas, que surgem do nada.
Parecem fazer parte das paredes.
Mas quando tu se aproxima, elas abrem e te surpreendem.

Uma garotinha oriental se diz a maquinista.
Me leva até uma sala especial.
Mais parece seu quarto, sua casa.
De repente, um vaso cai e quebra no chão.

Dentro dele, inúmeros objetos estranhos.
Muitos parafusos e ferramentas.
Ela junta algumas peças e monta um robô com controle remoto.
Que funciona.

Mas tem alguém lá no quarto escuro.
E não gostou de ver o vaso quebrado.
Olhos amarelos e gritos vindo da escuridão.
Ranger de dentes.
Hora de fugir.

Túneis e portas secretas.
Qual delas? Qualquer uma.
Uma escadaria para o nível inferior do metrô.
Um enorme corredor iluminado artificialmente.
Luz fraca e amarelada.

A garota vai na frente, é mais rápida.
O robô vem atrás, é mais lento.
Dá pra ouvir quando ele é alcançado e destruído.
O túnel vai ficando escuro, escuro, escuro.
Não se vê mais nada.
Só uma pequena luz brotando lá no fim.

O corredor vai ficando iluminado pelo sol.
A garotinha sumiu lá na frente.
E agora apenas uma boneca loira sentada na saída.
Ela gira a cabeça na minha direção conforme eu passo.
Lentamente e em absoluto silêncio.

No fim do túnel, uma ponte à céu-aberto.
Tão alta que dá pra tocar as nuvens.
E sem muros protetores nas laterais.
Ela vai ficando estreita, estreita, estreita.

Como em um aeroporto, uma voz feminina anuncia pelos alto-falantes:

"Atenção!
Você está deixando o Aminoácido.
Dirija com cuidado."